segunda-feira, 16 de setembro de 2013

Secos e Molhados - quando o que importa é não estar vencido

Ao me deparar com a tarefa de analisar o debut do Secos e Molhados, que em 2013 completa 40 anos, entendo que não posso negar o universo imagético que o cerca. Andrew Goodwin, em "Dancing in the distraction factory", estabelece que a performance “na música pop é, mais do que nunca, uma experiência visual”. E no caso do Secos e Molhados, seu primeiro disco é uma experiência visual, sonora e histórica.


Não vamos nos enganar: a figura de Ney Matogrosso, que dispensa apresentações, toma de conta do disco, da imagem da banda, das canções - e é absorvido por elas. Inspirado em Caetano - que ele viu saindo de um hotel vestido de rosa dos pés à cabeça - Ney criou para si um personagem hipersexual, andrógino, agressivo, dúbio - e intensamente sensível. Segundo ele, a face pesadamente pintada de branco era uma forma de se eximir de uma identidade formal, um nome, um rosto - e assim ser puro corpo e sexo. Ney diz que não é "filho da tropicália, mas uma consequência". Banquete de signos e referências que parecem ser refletidas numas das capas mais icônicas da música brasileira.




O projeto "Secos e Molhados" era uma mistura de música com poesia. Talvez isso soasse óbvio, mas não é o caso. Secos eram um exercício de musicalidade sobre lirismo, a maior parte das letras eram previamente poemas - como "Rosa de Hiroshima" de Vinícius de Moraes,  "Rondó do Capitão" de Manuel Bandeira, "Amor" e "Primavera nos Dentes" do poeta português João Apolinário, "Mulher Barriguda" de Solano Trindade e "As Andorinhas" de Cassiano Ricardo.  Mesmo as faixas que não eram poemas prévios ("O Patrão Nosso de Cada Dia", "O Vira", "Sangue Latino", "Assim Assado", "El Rey" e "Fala") possuem estruturas muito ligadas ao modernismo literário brasileiro. O disco parece um processo de tradução musical daquilo que nos é mais imediato na poesia, como uma transcrição de subjetividades, de percepções.

O disco aqui se assemelha a uma arena de batalha: os arranjos brilhantes (assinados pela banda), as letras e a presença onipotente de Ney parecem disputar um espaço de destaque no que é uma das melhores sínteses dos anos 60-70 - a própria ideia de espaço de disputa parece um sinal do contexto histórico do álbum. A América Latina passava por um processo de dominação de regimes ditatoriais e um florescimento de uma consciência política da juventude de um lado, ao lado do recente iê-iê-iê e do sentimento de latino-americanidade. Era uma mistura da anestesia política que tentava se aplicar nos países sob o julgo militar e o debater de pernas de uma geração cujos sonhos foram reduzidos a pó - que lembra Belchior, papo pra outro artigo.





Esse universo repercute e parece dar vazão ao que a banda desenvolve - a melancolia dos baixos de "Sangue Latino", um desabafo do povo oprimido ao lado de "O Vira", debochado rock que mistura folclore brasileiro, homossexualidade e música tradicional portuguesa. O que deveria soar como um grande deboche se transforma em um recado da banda: eles são produto de uma geração que não é burra. Eles amam as guitarras elétricas tanto quanto amam as letras engajadas. Eles são o popular e o erudito - vão de estruturas simples à delírios instrumentais como "Primavera nos Dentes", e vinhetas poéticas que criam suspense para outras experiências sonoras.

No documentário "Olho Nu", sobre Ney Matogrosso, este diz que "é subversivo, gosto de ser subersivo, vou sempre ser subersivo. A cada governo que surgir, serei subversivo". Secos e Molhados se revela como um pilar de subversão pela forma como nasceu - um grito de poesia, sexo, identidade cultural e corpo sob a mira de armas que ainda hoje deixaram sua marca em uma América que sofre. Se a história destruiu sonhos, "Secos e Molhados" parece ser um ritual tribal que não os enterra, mas transforma sua cinza em tinta de guerra, como uma camada colorida no rosto de um nativo que usa seu canto como escudo.

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